Há algumas semanas meu marido me olha e pergunta: “Você está bem? É feliz?” E eu respondo que sim, perguntando por quê. Ele diz que há algo em meu semblante, que estou sempre de cara fechada. E ele está certo. O processo de amadurecer como mulher, esposa e mãe tem sido dolorido para mim e meu aspecto não anda dos melhores. Mas nunca estive tão feliz e realizada. Complexo, não é mesmo? Afinal, como é possível que, sendo eu uma mulher feliz, siga com cara de menina trombuda?
Com essa questão em mente, dando sequência à formação do Instituto Borborema mencionada no post anterior, li para o curso de prosa o conto “Um coração simples” de Gustave Flaubert. Nele a personagem principal, Félicité, fiel e invejável criada da sra. Aubain, tinha uma vida cheia de tribulações e sofrimentos, mas não reclamava, não se revoltava, nem dava chiliques. Pelo contrário, ela “jamais falava de suas inquietações”, olhava para a vida “com a imaginação que inspiram as verdadeiras ternuras” e não se orgulhava de seus próprios heroísmos.
Tamanho foi o constrangimento que me causou essa personagem que decidi reler o conto buscando pistas de como era o semblante dessa mulher de coração tão singelo. Eu queria saber se ela, conforme construída por seu autor, servia ao próximo, não só com leveza de espírito, mas também com um sorriso na face.
Na primeira descrição que o autor faz do rosto de Félicité limita-se a apontar que era magro e que seu porte geral era rijo, comedido, como se fosse “de madeira”, funcionando de modo automático. Mais adiante no texto, por ocasião da partida do sobrinho de Félicité em viagem para a América, seu rosto nos é pintado banhado por lágrimas, com os olhos voltados para as nuvens. Esse mesmo rosto dolorido afunda-se no travesseiro para chorar a notícia da morte do sobrinho, banha-se novamente de lágrimas pela morte de Virgine (filha da patroa) e se contorce pela perda do papagaio de estimação Lulu. Então, em um dos momentos mais dramáticos da narrativa, a face direita de Félicité surge ensanguentada após ser chicoteada pelo condutor de uma charrete desgovernada. Após todo esse suplício, tendo chegado a hora da morte de Félicité, vemos enfim uma face recoberta de uma sensualidade mística e seus lábios a sorrir.
Note-se que Flaubert vai como que dando aos poucos ao leitor detalhes dos traços da face de Félicité, fazendo surgir com mais clareza seus contornos à medida que o sofrimento da personagem vai crescendo. E quando enfim temos a imagem do rosto lacerado, lança sobre ele a luz da Graça, numa espécie de transfiguração, para que se nos revele o semblante gozoso dos redimidos.
Isso significa que Félicité não tivesse sorrido até então ou que não tivesse sido alegre em vida? Claro que não. Não estamos, afinal, diante de uma personagem amargurada, muito pelo contrário. Mas era preciso, para delimitar seu carácter, a bondade e a pureza de seu coração, que o autor desse destaque àqueles momentos dolorosos que foram condição para o sorriso final, isso é, para o alcance da Felicidade Plena. Para melhor entendê-lo, basta pensarmos na Via Crucis, e em como, para contar a história do maior de todos os Triunfos, isso é, a Vitória de Cristo sobre a morte, aprouve ao Senhor deixar registrado a desfiguração paulatina da Sagrada Face e, já bem próximo do fim, um retrato do sofrimento extremo no Santo Sudário. Algo que em hipótese alguma nos autoriza a dizer que Cristo tenha sido, antes da Paixão, sisudo ou que não haja, para além da cruz a alegria pascal.
Com todo esse percurso, pude atentar para o fato de que a história de minha vida está sendo ainda contada e que por vezes, por saber que o sofrimento neste Vale de Lágrimas é condição para entrada na Vida Eterna, deixo-me arrastar pela força dos pequenos sacrifícios diários, descuidando-me da superfície, isso é, do meu semblante. Acho que é coisa de melancólico ver beleza na dor, levar tudo, inclusive a si mesmo muito a sério…Mas se estou disposta a servir os meus, o sorriso no rosto não deveria ser minha primeira gentileza? Qual espaço da ALEGRIA em minha vida? Continuarei o assunto na próxima postagem.